Obra original do artists Ricardo AKN que faz parte de sua exposição "Narrativas em Camadas - Entre linhas e fragmentos".
O Banheiro de Baco
No bairro mais antigo da cidade, havia um apartamento que parecia ter parado no tempo. As paredes eram pintadas de um rosa desbotado, e o banheiro exalava o aroma nostálgico de perfumes antigos e segredos guardados. A pia de porcelana, marcada por anos de uso, servia de palco para cenas que pareciam saídas de um sonho surreal.
Naquela manhã, enquanto o sol se filtrava pela janela empoeirada, um adesivo enorme na parede refletia a luz, criando um efeito hipnótico. Era a imagem de um garoto, seu rosto dividido em duas metades, como se alguém tivesse descolado uma camada de sua pele para revelar uma outra versão de si mesmo. O olhar do menino parecia introspectivo, perdido entre a curiosidade e a melancolia. Ao lado dele, uma bolha de fala dizia, com um tom quase zombeteiro: "Muito Prazer!"
O reflexo no espelho do garoto era um reflexo diferente, mais sombrio e etéreo. Ali, ele não era apenas uma imagem, mas um portal para outro lado, um outro eu que permanecia oculto na superfície de sua pele lisa. Havia algo de inquietante na forma como as duas versões do rosto se encaravam, como se estivessem à beira de uma revelação que nunca aconteceria.
Logo abaixo, uma figura saída de um quadro clássico se materializava, como se houvesse escapado de uma galeria de arte para o mundano ambiente do banheiro. Era o Pequeno Baco Doente, famoso pela obra de Caravaggio. Ele estava lá, com seu rosto pálido e lábios desbotados, segurando um cacho de uvas com uma expressão de cansaço e desaprovação, como se o tempo e o espaço não significassem nada para ele. A coroa de folhas de videira em sua cabeça parecia estranhamente viva, tremeluzindo sob a luz fraca.
Observando tudo, um pequeno gato tricolor estava sentado no chão azulejado. Seus olhos brilhantes estavam fixos no Baco, como se entendesse a ironia de um deus mitológico no humilde banheiro rosa. Talvez o gato fosse a única criatura que sabia de todos os segredos ocultos nas rachaduras da cerâmica e nas sombras do espelho. Ele era o guardião silencioso daquele universo onírico, onde o passado e o presente, o real e o imaginário, se entrelaçavam sem esforço.
Naquele dia, algo mudou. O garoto no espelho piscou. Foi um movimento tão rápido que quase passou despercebido, mas o gato viu e miou baixinho. O Baco ergueu sua cabeça lentamente, suas feições de mármore suavizando-se em uma expressão de compreensão. O menino, ou o que restava dele, sorria através das camadas do adesivo, quebrando a distância entre as versões de si mesmo.
Enquanto isso, o gato, satisfeito com a mudança quase imperceptível no ar, se espreguiçou e saiu do banheiro, deixando o Pequeno Baco Doente e o garoto do espelho sozinhos em sua contemplação silenciosa. Naquele lugar, onde as linhas do tempo e da realidade eram apenas sugestões, a estranha harmonia entre os personagens permanecia, esperando pelo próximo que ousasse enxergar além das aparências e descobrir as histórias ocultas nas paredes de um banheiro rosa.