Obra original do artists Ricardo AKN que faz parte de sua exposição "Narrativas em Camadas - Entre linhas e fragmentos".
Meu amigo Sol
Numa cidade que quase sempre chovia e onde o céu era um eterno cinza opaco, vivia uma menina chamada Luna. Ela tinha o hábito de pedalar pelas ruas estreitas e vazias em uma bicicleta preta, com um aro tão grande que parecia um círculo perfeito desenhado à mão. Luna era pequena, de olhos grandes e cabelos curtos cortados em franja, sempre vestida com seu vestido listrado, que mais parecia um uniforme de marinheiro perdido em terra firme.
Toda vez que Luna saía para andar de bicicleta, parecia se deslocar entre dois mundos. O mundo da cidade, cheio de sons abafados e reflexos nas poças d'água, e um outro, mais silencioso e misterioso, que existia apenas quando ela pedalava sem rumo pelas ruas desertas. Foi numa dessas jornadas, num fim de tarde particularmente nebuloso, que Luna encontrou algo que mudaria sua vida para sempre.
Enquanto pedalava pela viela mais estreita do bairro, um flash de luz refletiu em seu rosto, fazendo-a parar bruscamente. Ela desceu da bicicleta, intrigada, e seguiu o brilho até uma parede velha, encardida pela umidade. Ao se aproximar, notou que a parede não era o que parecia ser. Na verdade, havia uma porta ali, disfarçada, com um letreiro quase apagado que dizia: “Muito Prazer.”
Com um misto de curiosidade e cautela, Luna empurrou a porta e entrou. O interior era um estúdio de arte abandonado, as paredes cobertas de desenhos e pinturas empoeiradas, como se alguém tivesse congelado o tempo. No centro do estúdio, havia um grande espelho de corpo inteiro, e ao se aproximar dele, Luna viu o seu reflexo — mas com uma diferença sutil, porém estranha.
No espelho, Luna estava exatamente como era, exceto por um detalhe: ela levantava a mão em um aceno suave, como se dissesse adeus ou olá. Do lado de fora do espelho, Luna olhou para a própria mão, que permanecia imóvel ao lado do corpo. Algo no reflexo parecia ter vida própria, uma versão dela que existia apenas no vidro.
Movida por um impulso, Luna ergueu a mão devagar, e o reflexo a acompanhou com um segundo de atraso, como se estivesse com um pé em um universo paralelo. Quando seus dedos tocaram a superfície fria do espelho, uma onda de energia correu pelo seu corpo, e ela sentiu algo mudar dentro de si.
Ela montou na bicicleta e começou a pedalar, e a sensação de liberdade era avassaladora. Luna sorriu, não um sorriso comum, mas um sorriso que vinha do fundo de sua alma. Pedalou por campos de flores, cruzou riachos cristalinos, sentindo-se mais viva do que nunca. O aceno no espelho havia sido um portal, um convite para explorar além dos limites do conhecido.
Depois de horas, ou talvez dias — Luna não sabia ao certo —, sentiu-se cansada e decidiu parar. Foi quando percebeu que estava de volta à sua cidade, parada em frente ao mesmo estúdio de arte abandonado, sua mão ainda tocando o espelho. O mundo ao seu redor era novamente cinza e chuvoso, mas Luna agora tinha um segredo, um caminho para um mundo de cores e possibilidades.
Ela sabia que poderia voltar sempre que quisesse, que o aceno do espelho era sua chave para atravessar o mundano e mergulhar no extraordinário. Com um último olhar para o espelho, Luna acenou de volta para seu reflexo, pegou sua bicicleta preta e pedalou pelas ruas vazias, com a certeza de que o verdadeiro mágico não era o espelho, mas a sua própria imaginação.
Era uma tarde cinzenta quando Clarice decidiu sair de casa. Fazia dias que as nuvens escondiam o sol, e a melancolia havia se instalado nas ruas da cidade. As pessoas passavam apressadas, os rostos cobertos por expressões de tédio e cansaço. Mas Clarice não se importava. Ela tinha uma missão.
Vestiu um vestido de listras, que caía até os joelhos, e um par de tênis surrados que já haviam percorrido muitas estradas. Prendeu o cabelo em um coque desajeitado e pegou sua bicicleta, uma velha companheira de aventuras, com a pintura desgastada e o guidão torto. A bicicleta, de tanto tempo de uso, parecia quase uma extensão de seu corpo, e Clarice não conseguia se imaginar andando sem ela.
Ao sair, se dirigiu para o centro da cidade, pedalando devagar pelas ruas vazias. As calçadas eram habitadas por figuras solitárias e portas entreabertas, revelando apenas fragmentos de vidas alheias. Clarice não reparava nos detalhes do caminho, como se estivesse imersa em outro mundo, apenas sentindo o vento no rosto e ouvindo o som rítmico dos pedais.
Eventualmente, chegou a um antigo muro grafitado, onde costumava parar para descansar. Ali, havia um pequeno quadrado pintado em preto, com letras brancas escritas de forma cuidadosa: "Muito Prazer." Clarice sempre achou aquela frase estranha. Não havia ninguém para quem se apresentar ali, exceto talvez ela mesma. Era como se o muro estivesse vivo e a saudasse cada vez que ela chegava, reconhecendo-a como uma velha amiga.
Encostou a bicicleta no muro e ergueu a mão, acenando para o vazio. Clarice sempre fazia isso, como se cumprimentasse uma multidão invisível. E, naquele momento, ela realmente sentiu uma presença. Não uma pessoa, mas uma sensação. Um misto de calma e expectativa, como se algo estivesse prestes a acontecer. Como se o ar ao seu redor tivesse se tornado mais denso, vibrante.
Fechou os olhos e sorriu. Não sabia por quê, mas tinha a impressão de que aquele dia seria diferente. Naquele aceno para o nada, Clarice percebeu algo que sempre esteve ali, mas que jamais havia visto antes. Na sombra da sua bicicleta e no contorno do muro, uma história se desenrolava, como se o passado e o futuro estivessem trançados no presente.
Abriu os olhos devagar e viu, na superfície rugosa do muro, um reflexo borrado de si mesma. Uma Clarice que acenava de volta, mas que parecia ser feita de poeira e sonhos. E, naquele instante, entendeu. Entendeu que todas as suas idas e vindas eram apenas fragmentos de um grande aceno, uma dança infinita de encontros e despedidas.
Ela olhou para a bicicleta, para o muro, para o reflexo que se dissolvia, e soube que, naquele breve instante, havia encontrado o que procurava. Uma sensação de completude, como se estivesse exatamente onde deveria estar. E, com esse pensamento, subiu na bicicleta, acenou mais uma vez e partiu, pedalando rumo ao próximo aceno, ao próximo encontro.
Porque, para Clarice, a vida era isso: um eterno "Muito Prazer."